A expressão descreve um fenômeno contemporâneo em que os limites entre o que é verdadeiro e o que é falso se tornam cada vez mais difíceis de definir. A confiança em instituições tradicionais — como a imprensa, a ciência e o judiciário — vem sendo sistematicamente abalada, enquanto teorias da conspiração, fake news e "narrativas alternativas" ganham espaço nas redes sociais e no debate público.

Esse conceito não surgiu com a inteligência artificial, mas vem se intensificando com as transformações digitais. Em 2016, o termo "pós-verdade" foi eleito a palavra do ano pelo Dicionário Oxford, refletindo esse novo contexto onde os sentimentos e crenças pessoais muitas vezes importam mais do que os fatos objetivos [1].

Agora, entramos em uma nova fase dessa crise, impulsionada pelo avanço acelerado das tecnologias de geração de conteúdo por IA.

O que é o Google VEO 3 — e quem mais está nesse jogo?

Apresentado em maio de 2025, durante o evento Google I/O, o Google VEO 3 é um modelo de inteligência artificial capaz de gerar vídeos hiper-realistas a partir de comandos de texto. Em segundos, a ferramenta cria clipes com qualidade cinematográfica, transformando descrições simples em cenas com movimentos fluídos, iluminação realista e personagens convincentes.

Mas o VEO 3 não está sozinho nessa revolução. Outras tecnologias semelhantes já estão em desenvolvimento ou em uso:

  • Sora (OpenAI): ferramenta que cria vídeos de até um minuto com cenas altamente realistas a partir de prompts textuais.

  • Runway Gen-3: voltada para criadores de conteúdo, permite gerar vídeos com controle artístico refinado.

  • Pika: plataforma que gera vídeos curtos com estética cinematográfica e foco em storytelling.

  • Synthesia: cria apresentadores virtuais realistas, muito utilizada em treinamentos e vídeos institucionais.

  • D-ID: transforma fotos em vídeos com falas, permitindo a criação de “personagens” que parecem reais.

Essas ferramentas democratizam a criação audiovisual — mas também levantam sérias questões éticas e sociais.

IA na prática: quando a mentira parece verdade

A melhor forma de compreender o impacto dessas tecnologias é ver com os próprios olhos. A seguir, dois exemplos mostram como ferramentas de inteligência artificial já são capazes de criar realidades convincentes do zero — tanto em vídeo quanto em imagem estática.

🎥 Vídeo gerado com Google VEO 3

O vídeo abaixo foi inteiramente criado por inteligência artificial. Não há câmeras, nem atores, nem cenários reais. Tudo foi gerado a partir de um comando de texto. Observe como os movimentos, a iluminação e até a expressão dos personagens são quase indistinguíveis da realidade:

📺 Assista aqui (YouTube Shorts)

Ferramenta: Google VEO 3

🖼️ Imagem gerada com Midjourney

A imagem abaixo parece uma fotografia histórica autêntica, mas é uma criação da IA Midjourney. Nem o homem, nem o cenário, nem o momento existiram de fato. Tudo foi gerado com base em descrições textuais, recriando com impressionante precisão a estética fotográfica da década de 1930:

Imagem gerada por Midjourney – estilo fotográfico vintage, simulando retratos da Grande Depressão norte-americana.

Deeptruths: Deepfakes 2.0 A nova geração da desinformação

Se os deepfakes já eram preocupantes por manipularem rostos e falas, essas novas ferramentas vão além. Elas não apenas modificam a realidade: elas criam novas realidades do zero.

Assim surge uma nova ameaça: os “deeptruths” — conteúdos falsos com aparência irrefutável. Imagens de protestos que nunca aconteceram, discursos forjados, testemunhos simulados por IA. A dúvida passa a ser não apenas sobre o que é falso, mas sobre se ainda existe algo que podemos chamar de "prova visual"[3].

E a sociedade? Está preparada?

A velocidade dessas transformações tecnológicas supera a capacidade coletiva de compreendê-las e regulá-las. Sem alfabetização midiática e sem mecanismos de transparência eficazes, o risco é cair em uma sociedade onde a dúvida constante fragiliza o senso crítico e o engajamento cidadão.

As consequências já são visíveis:

  • Manipulação de eleições

  • Propagação de desinformação em escala industrial

  • Criação de “evidências” falsas em processos judiciais

  • Descredibilização de denúncias legítimas

Qual o papel das organizações e da educação?

Organizações da sociedade civil, educadores, comunicadores e ativistas têm papel fundamental para frear o avanço da desinformação:

  • Educação midiática e digital: ensinar a reconhecer fontes confiáveis, checar conteúdos e entender como funcionam as IAs.

  • Transparência das plataformas: pressionar empresas a sinalizarem claramente o conteúdo gerado por IA.

  • Regulação e políticas públicas: desenvolver legislações que limitem abusos e incentivem o uso ético da tecnologia [4].

  • Fomento à pesquisa e ao jornalismo independente: apoiar iniciativas que defendem a verdade como bem público.

Desafio civilizacional

A crise da verdade não é apenas um problema de comunicação. É um desafio civilizacional. Tecnologias como o Google VEO 3, o Sora, o Runway e outras estão expandindo as fronteiras da criatividade humana, mas também colocam em xeque nossa capacidade de confiar no que vemos.

Filósofos como Hannah Arendt, ainda no século XX, já alertavam para os perigos de um mundo em que os fatos podem ser manipulados até perderem sua força política e moral[5]. Em seus escritos, ela descreveu como regimes autoritários se aproveitam da confusão entre verdade e mentira para desorientar a população e fragilizar a democracia.

Mais recentemente, expressões como “pós-verdade” e “verdades alternativas” passaram a descrever esse novo cenário em que crenças pessoais e emoções pesam mais que evidências concretas.

Em um mundo onde tudo pode ser criado — inclusive a mentira perfeita — a defesa da verdade exige mais do que boas intenções: exige educação, regulação e, sobretudo, consciência crítica.

A inteligência artificial está moldando o futuro. A pergunta é: vamos moldar com ela uma sociedade mais justa e informada ou mais manipulável e confusa?


Referências

  1. 1- Oxford Languages. Palavra do Ano 2016: Pós-verdade. Disponível em: https://languages.oup.com/word-of-the-year/2016/

  2. 2- Google. Introducing Veo: our most capable video generation model. 2024. Disponível em: https://blog.google/technology/ai/google-veo-text-to-video-model/

  3. 3- Westerlund, Mika. The Emergence of Deepfake Technology: A Review. TIM Review, 2019.

  4. 4- UNESCO. Diretrizes para a Governança de Plataformas Digitais. 2023.

  5. 5- Arendt, Hannah. Verdade e Política. In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.