Entendendo a criminalização

Em 2021, a antiga Lei de Segurança Nacional (lei nº 7.170/1983), editada no período ditatorial e reconhecidamente autoritária, foi revogada para dar lugar a uma nova legislação dedicada ao combate de crimes contra o Estado Democrático de Direito (lei nº 14.197/2021). Um de seus artigos pretendia tornar crime a divulgação de conteúdos desinformativos que prejudicassem os processos eleitorais. Na verdade, para que ficasse caracterizado o crime, era necessária uma série de elementos específicos. Era assim que a lei tratava do assunto:

Como se vê, o artigo destinava-se a punir quem, por meio de disparos de massa em aplicativos de comunicação privada, disseminasse fatos que sabe não serem verídicos e que pudessem colocar em xeque a confiança no processo eleitoral. Assim, não se trata da criminalização de qualquer conteúdo desinformativo, mas aquele apto a abalar a confiabilidade das eleições a partir de meio e modo de divulgação bem-definidos. Seria o caso, por exemplo, da contratação de um disparo em massa no Whatsapp envolvendo um vídeo manipulado em que uma urna eletrônica retorna informações de uma candidatura diferente daquela cujo número de votação foi digitado.

Ainda em 2021, o ex-presidente Jair Bolsonaro vetou o artigo alegando, entre outros motivos, que o dispositivo não deixa claro se a pessoa a ser punida seria quem criou ou quem compartilhou os conteúdos e que a definição do que faz um conteúdo ser inverídico gera grande insegurança jurídica. [2] Passados quase três anos da ação presidencial, o Congresso votou, em maioria, pela manutenção do veto.

A princípio, levando-se em conta que o cenário de discussão do “PL das Fake News” encontra-se arrefecido [3] e que 2024 é mais um ano eleitoral no Brasil, a notícia parece indicar mais uma vitória para aqueles que se beneficiam da desinformação. No entanto, uma análise mais detida confirma que o artigo descartado apresentava alguns problemas e sua efetividade poderia ser inócua.

Entre os pontos apontados pelo veto presidencial, consta a dificuldade de atestar o que seria inverídico a ponto de ser punível pelo Código Penal. O veto, inclusive, ironiza a viabilidade de tal proposta ao falar em ser necessário um “tribunal da verdade” para lidar com esta tarefa. [4] Apesar de o termo suscitar debates, um exemplo intuitivo de fato sabidamente inverídico capaz de prejudicar os processos eleitorais seria a divulgação massiva de que as urnas eletrônicas estão conectadas à Internet, o que as permitiria ter seus resultados facilmente adulterados.

Apesar de a terminologia de fato “sabidamente inverídico” e afins também ser encontrada em algumas normas eleitorais [5], o artigo vetado inova por punir excessos da liberdade de expressão com pena de reclusão de 1 a 5 anos, o que preocupa pois pode dar ensejo, sob a alegação de combate à desinformação, a abusos e perseguições no combate à desinformação.

Em síntese, diante da especificidade dos elementos do artigo e preocupação com o direito à liberdade de expressão, a confirmação do veto pelo Congresso, apesar de uma vitória de significância política para aqueles que apoiam a desinformação, revela-se como uma atitude prudente.


A desinformação segue impassível de punição?

O veto à previsão de um novo crime, contudo, não significa que a desinformação seja impassível de punição no ordenamento jurídico brasileiro. No contexto eleitoral, especificamente, o Código Eleitoral prevê, em seu art. 323, pena de dois meses a um ano (ou pagamento de 120 a 150 dias-multa) para quem divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que souber serem inverídicos sobre partidos ou candidatos e que sejam capazes de exercer influência perante o eleitorado. [6] É importante ressaltar que há uma diferença semântica entre “fatos que se sabem inverídicos” (Art. 323, caput, do Código Eleitoral) e “fatos sabidamente inverídicos” (Art. 359-O, caput, vetado da Lei 14.197/24) e que o primeiro dispositivo versa sobre candidatos e partidos, enquanto o segundo, sobre o processo eleitoral como um todo.

A resolução nº 23.714/2022 do Tribunal Superior Eleitoral, por sua vez, estabelece uma série de medidas para o enfrentamento à desinformação no contexto eleitoral, prevendo, por exemplo, pena de multa para plataformas digitais que falhem em cumprir diligentemente decisões de remoção de conteúdo e a autorização para que se determine a suspensão temporária de perfis, contas e canais de mídias sociais que sistematicamente produzam desinformação. [7]

Nesse sentido, é útil citar aqui alguns dados interessantes sobre as primeiras movimentações do Tribunal Superior Eleitoral para endereçar o combate à desinformação. Pesquisa sobre as eleições municipais de 2020 conduzida pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) junto ao Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI-FGV) revelou como a resolução TSE n.º 23.610/19 (sobre propaganda eleitoral), cujo artigo 9º servia ao combate à desinformação, vinha sendo pautada nos casos em tribunais regionais eleitorais. Segundo os resultados da pesquisa, na maioria dos casos que reconheceram a presença de fato inverídico de acordo com o referido artigo, havia alegações específicas sobre o cometimento de ilícitos penais por outros candidatos. [8]

Vale o destaque de que, fora do contexto eleitoral, os crimes de injúria, difamação e calúnia podem servir no combate a conteúdos desinformativos que envolvam indivíduos.


Experiências internacionais

Ao redor do mundo, alguns países já criminalizaram a desinformação e sua disseminação.

De acordo com levantamento publicado em 2021 pelo Grupo de Reguladores Europeus para Serviços de Mídia Audiovisual (ERGA) [9], até 2020, 11 dos 27 Estados-membros da União Europeia contavam com legislação que ou definia o que era desinformação ou era aplicável a noções de desinformação. [10] São eles: Áustria, Chipre, Cróacia, Eslováquia, França, Grécia, Hungria, Lituânia, Malta, Romênia e República Tcheca. Destes, a Lituânia foi apontada como a única a contar com legislação específica que define o que é desinformação (“informação falsa divulgada intencionalmente”) e proíbe sua divulgação e a de informações que sejam caluniosas e ofensivas para uma pessoa ou degradantes à dignidade e honra humanas. [11] Vale notar que a definição não abarca prejuízos à ordem pública (apenas a pessoas específicas) e tampouco menciona o elemento de proveito econômico considerado na definição de desinformação da Comissão Europeia. [12]

Já os demais países listados, apesar de não contarem com uma legislação ou definições específicas, contam com previsões legais que se enquadram no conceito legal de desinformação da Comissão Europeia. Estas, geralmente, encontram-se em leis criminais e fazem menção a “notícias falsas” ou “falsas informações”. [13] Entre os países mapeados que preveem pena de reclusão, as penas máximas variam de três meses (Malta) a cinco anos (Hungria).

Em levantamento global recente feito pelo Center of News, Technology and Innovation (CNTI) a respeito de legislações sobre desinformação, entre 31 países consultados em seis regiões diferentes, 27 preveem penas criminais pela criação e publicação de “fake news”, que vão desde a imposição de multas à suspensão temporária de veículos de comunicação à pena de reclusão. [14] O CNTI chega a pontuar que, apesar de nem a imprensa nem jornalistas independentes estarem ao centro das discussões de regulações sobre desinformação, estas os atingem por meio de efeitos cascata dado que não raro estes instrumentos legais podem servir como aparato de perseguição à imprensa livre, especialmente em regimes de viés autoritário. O levantamento destaca também a importância da previsão de atribuições claras a autoridades de supervisão responsáveis pela boa aplicação das políticas sobre desinformação a fim de evitar abusos e desmandos autoritários. Uma rápida busca na Internet, por exemplo, retorna casos de prisões de jornalistas acusados de propagar desinformação em países como Turquia e Hungria.

Desinformação: criminalizar ou não?

Diante do extremo potencial lesivo dos conteúdos desinformativos, é compreensível que haja grande interesse público em os combater de maneira decisiva e veemente, inclusive pela repressão a condutas pela via criminal. No entanto, é preciso reconhecer que a propagação da desinformação se apresenta como um fenômeno inerentemente multifacetado que envolve múltiplos atores e que exige consideração e atenção contínuas a fim de endereçar os vários elementos de sua complexidade.

A criminalização da desinformação no Brasil, portanto, exigiria cautela e ponderação, devendo vir acompanhada de atenção indispensável a pontos como quem supervisionaria a legislação a ser aplicada, o que faz um conteúdo ser desinformativo (acompanhado da atenção à semântica e aos contextos), como essas políticas impactam os atores implicados na desinformação e a aplicabilidade da lei criada. Desacompanhado dessas reflexões, o movimento de criminalizar corre o risco de ser percebido como uma falsa bala de prata no combate ao fenômeno, mera promessa que não se concretiza.

É necessário ver a eventual criminalização de conteúdos desinformativos como mais uma estratégia no combate à desinformação - assim como a regulação mais geral da circulação de conteúdos em grandes plataformas digitais, as iniciativas de letramento digital e educação midiática, os acordos entre grandes plataformas digitais e instituições públicas, entre outras. Mais indispensável ainda é investir esforços nas estratégias que previnem e mitigam de maneira mais contundente o alastramento da desinformação, como a educação midiática e uma regulação apropriada com protocolos eficazes que abarquem a circulação de conteúdos nas grandes plataformas digitais.




Referências e Notas de Rodapé

[1] Congresso mantém veto a dispositivo que criminalizava a disseminação de fake news em eleições. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/1067068-congresso-mantem-veto-a-dispositivo-que-criminalizava-a-disseminacao-de-fake-news-em-eleicoes> Acesso em: 13/06/24

[2] Artigo retirado da Mensagem nº 427, de 1º de setembro de 2021, mensagem de presidencial apresentando justificativas para os votos à Lei nº 14.197/2021. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-427.htm#acao%20penal> Acesso em: 13/06/24

[3] Após intensa movimentação na primeira metade de 2023 (inclusive, com a aprovação de regime de urgência na votação da Câmara dos Deputados) o projeto seguiu inativo até pouco tempo. Recentemente, foi anunciada a criação de um grupo de trabalho composto por 20 deputados para desenvolver novo texto para o combate à desinformação, dados os impasses experimentados com o PL 2630/2020.

[4] Assim argumenta o ex-presidente em seu veto: “A despeito da boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objeto da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que a compartilhou (mesmo sem intenção de massificá-la), bem como enseja dúvida se o crime seria continuado ou permanente, ou mesmo se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível pelo Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o que acaba por provocar enorme insegurança jurídica.” Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-427.htm#acao%20penal> Acesso em: 13/06/24

[5] Ver Código Eleitoral e a resolução nº 23.714, de 20 de outubro de 2022, do Tribunal Superior Eleitoral.

[6] BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Art. 323. Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado: Pena – detenção de dois meses a um ano ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.

[7] BRASIL. Resolução nº 23.714/2022 do Tribunal Superior Eleitoral. Ver artigos 2º e 4º.

[8] Laboratório de Políticas Públicas e Internet; Centro de Pesquisa em Ensino e Inovação. Desinformação nas eleições municipais de 2020: notas de uma análise jurisprudencial. 2021.

[9] European Regulators Group for Audiovisual Media Services. Notions of Disinformation and Related Concepts. 2021. Disponível em: <https://erga-online.eu/?page_id=14>

[10] Ó Fathaigh, R. & Helberger, N. & Appelman, N. (2021). The perils of legally defining disinformation. Internet Policy Review, 10(4). Disponível em: <https://doi.org/10.14763/2021.4.1584> Acesso em: 13/06/2024

[11] Idem

[12] European Commission. Tackling Online Disinformation: A European Approach COM/2018/236 final. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52018DC0236> Acesso em: 17/06/24

[13] Ó Fathaigh, R. & Helberger, N. & Appelman, N. (2021). Op. cit.

[14] Center for News, Technology & Innovation, January 2024. Most ‘Fake News’ Legislation Risks Doing More Harm Than Good Amid a Record Number of Elections in 2024. 2024. Disponível em: <https://innovating.news/article/most-fake-news-legislation-risks-doing-more-harm-than-good-amid-a-record-number-of-elections-in-2024/#Penalties> Acesso: 14/06/24




Escrito por Pedro Peres. Pedro Peres é mestrando no Mestrado Europeu em Direito, Dados e Inteligência Artificial (EMILDAI), na Dublin City University e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2018). Ele é membro do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) desde 2020.

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